Em busca da beleza plena e definida

Texto lindamente escrito por Raimundo Carrero para o Suplemento Pernambuco sobre meu amado Sidney Rocha. Literatura, talento, bondade, alegria, mergulho. Quando não há adjetivos e eles se tornam tudo.

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E a história? Bem, a história é outra história. O que importa, o que interessa, definitivamente, é a Beleza. Única, iluminada, plena. Para Sidney Rocha, o cearense recifencizado, para usar a expressão de Gilberto Freyre, a beleza não é só o fundamento da arte, mas é, sobretudo, o fundamento da vida. Basta um olhar atento na sua obra, e não apenas em Fernanflor, (este romance inquietante e luminoso, publicado pela sempre surpreendente Iluminuras) mas começando por Sofia, prosseguindo com O destino das metáforas, e aí entram sobretudo a Beleza e o Destino do próprio Sidney, cuja obra hoje é um desafio para os críticos e para os leitores. Por tudo isso, é preciso estar atento, prontamente atento à produção desse escritor já consagrado com um Jabuti e a caminho de muito, muito mais.

Para admirar e compreender Fernanflor é preciso aproximá-lo de Morte em Veneza, de Thomas Mann, e de O ciúme, de Allan Robbe-Grillet, o primeiro pelo tema — esta mesma busca da beleza — e o segundo pela arquitetura. Claro que são dois autores bem diferentes, mas aqui se trata de uni-los para a busca da compreensão deste romance ímpar, em nada semelhante àquilo que comumente escrevemos. Em Mann, há uma grande paixão dos personagens, reforçada também em Tonio, passando pela dificuldade da contemplação (porque parece faltar compreensão), e em Roble-Grillet encontramos o oposto, em virtude do distanciamento narrativo. Sidney reuniu os dois caminhos com incrível habilidade técnica, tarefa reservada aos que compreendem, perfeitamente, a arte do romance.

A arte do romance, aliás, que tem sido muito esquecida nas produções recentes de quem precisa agradar a plateia em meio a gritinhos e crises de histeria. Há uma expectativa contemporânea para que o romancista seja apenas um bom contador de histórias, causando estremecimentos e correrias. Ou que interprete esta ou aquela cultura, que, aliás, é tarefa do ensaio ou do jornalismo. O ficcionista interpreta com a beleza e com o maravilho, daí a necessidade da arquitetura romanesca e, portanto, das técnicas. Sidney Rocha sabe perfeitamente, que não há romance sem beleza e que a beleza encontra-se na interioridade da obra. Tudo o mais é parola científica sem rumo e sem sentido. Construir uma obra de ficção não é interpretar conflitos sociais com o viés acadêmico, mas transformar tudo isso em metáforas, diálogos, cenas, cenários, maravilha pura.

Mesmo Thomas Mann, considerado um erudito da literatura, mesmo ele, tão cheio de conteúdos, optava pela metáfora — por compreender, sem dúvida, que o real é muito pobre. E, no Brasil, Ariano Suassuna preferiu o caminho da interpretação pelos símbolos — o maracatu, o bumba meu boi, a música, a dança, no que nem sempre foi compreendido.

Sidney Rocha não se filia a nenhuma escola ou tendência, mas busca a qualidade artística acima de qualquer outra questão porque aí está arte. Em quase todo o texto ele congela o personagem, ou os personagens, em situações que não poderiam ser absurdas, mas reveladoras. Sem esquecer a vida, personagens congelados, mas humanos, conciliados com o questionamento e com a efervescência do ser. A mudança da cena, mas raramente do cenário, provoca também uma mudança do espírito, da inquietação, da alegria ou do desespero, sem que seja necessário um discurso, nem mesmo com a revelação do personagem.

Daí aparece outra técnica artística muito eficaz na arte da prosa de ficção: o olhar do narrador. Para possibilitar esta reunião de elementos que coordenam e dão unidade, e não apenas sentido, ao texto, Sidney recorre à sua habilidade de artesão, fazendo com que este olhar à distância mostre o personagem. E mostrar, como escreveu Truman Capote, é a principal técnica do romance contemporâneo, dispensando, assim, o discurso ensaístico. Aí está a principal renovação de Capote, passando pelo Noveau roman, em que as emoções se representam e não se exasperam.

Discussões e debates de temas não são próprios do romance contemporâneo. Tudo deve ser revelado na representação, na arte de mostrar sem dizer, de sorte que a arte se apresente plena e reveladora. Absolutamente iluminada; deixando o leitor seduzido e, sem dúvida, apaixonado.

Raimundo Carrero: Técnica não é regra. Qualifica a invenção literária e enriquece o escritor

Por Raimundo Carrero

Escritor e jornalista

Quando o escritor ou aspirante a escritor pretende, de verdade, construir uma obra, uma verdadeira obra literária, começa por estudar. Precisa aprender com os grandes a composição de um romance, de uma novela, de um poema, de um texto. Não para criar uma camisa de força, para copiar uma técnica, para repetir o que já foi feito. Nada disso. Estuda-se para inventar. Para recriar, conhecendo o que quer. Sabendo o que os grandes também fizeram.

Neste sentido, os músicos nos dão muitas lições. Durante muito tempo a dissonância – até a palavra parece torta – foi considerada um erro, e erro grave, coisa de músico desinformado, grosseiro. Começou a ser usada com medo, timidamente. Passou a ser usada por compositores, arranjadores e maestros mais ousados e terminou se popularizando. No Brasil, tornou-se rainha na Bossa Nova e destacou-se depois em todos os ritmos. Mas a dissonância é uma técnica. E por ser técnica não poderia ser estudada e utilizada?É a ousadia de uma técnica que muda e melhora muita coisa na vida e na arte.

A música é sempre um exemplo extraordinário. Podemos nos lembrar,por exemplo de Edu Lobo, autor de grandes sucessos nacionais. No auge da carreira largou tudo e foi estudar composição nos Estados Unidos. É um dos nossos compositores mais sofisticados e notáveis deste País.Sem esquecer Vila lobos que se tornou erudito pelo estudo, embora conhecedor do folclórico e do popular. Se recusou a repetir apenas e a copiar. Não lhe importava o sucesso, mas o êxito.

Conheço, no Recife músicos que passam meses estudando o silêncio entre um compasso e outro. Entre um movimento e outro. Muitos descobrem coisas incríveis nas partituras, que realizam depois na execução. Qualquer pessoa pode compor, mas nem todas conseguem ler uma partitura ou até mesmo num solfejo canhestro aprofundar muito sua capacidade de inventar.Se estudasse poderia ser muito, muito maior. Há quem confunda cadência com andamento. Lastimável.

O escritor Ronaldo Correia de Brito – a quem peço desculpas, mais uma vez, pelo erro que cometi semana passada – tem um início antológico no romance Estive lá fora, recentemente publicado. Recomendo a leitura e a análise. Assim começa o romance: “Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão.”

Irretocável. Com esta frase longa e forte,poética e dramática, o escritor coloca o leitor dentro da narrativa. Seduzindo-o. Convida-o a se solidarizar com Cirilo e com sua história inquietante. Continua: “ Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto”. Isto, seguramente, não é uma regra, mas uma técnica que deve ser estudada com frieza e dedicação para se tornar um exemplo. Dramaticidade sem excesso. Medida e harmonia juntas com o pretérito perfeito impondo-se como presente do indicativo. No segundo momento, opta pelo mais que perfeito, o que faz o tempo mover-se com lentidão. O mais que perfeito tem um tempo impreciso, fugaz.

Fonte: Diário de Pernambuco